O Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ como Mecanismo de Proteção das Mulheres

Após a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, instrumento que tem como finalidade garantir que as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas a que estão submetidas as mulheres ao longo da história sejam observadas em todos os julgamentos, promovendo uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres e meninas.

Por meio da Recomendação Nº 128, de 15/02/2022, o CNJ recomendava a adoção do Protocolo no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Agora, porém, com a Resolução Nº 492, de 17/02/2023, a aplicação do Protocolo é obrigatória. Exige-se, então, muito mais do que a simples subsunção do fato à norma; exige-se que juízes, advogados, defensores públicos, membros do MP e servidores, observem as relações de poder que permeiam a lide, as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas e, considerando todo o contexto, que apliquem a lei.

Entretanto, o mundo dos fatos demonstra uma realidade muito diferente das determinações do direito e dos protocolos de atuação do Judiciário. Em uma sociedade amplamente conservadora e patriarcal, fundamentada em normas de gênero e seus papéis tradicionais, a misoginia não é apenas expectativa coletiva, mas fundamentalmente o poder que disciplina, molda e produz as subjetividades humanas, o que resulta em regras sociais implícitas e explícitas, que constituem as instituições e controlam os corpos a partir delas.

O próprio Judiciário reproduz o machismo e outras discriminações interseccionais em seus processos, especialmente no Direito de Família, que é tão profundamente ligado às relações afetivas. Como descreve Foucault, o sujeito é corpo atravessado e produzido pelos jogos políticos. Essa associação de efeitos repressivos e produtivos do poder é a funcionalidade dos papéis de gênero, que, por meio das diversas “instituições disciplinares” da sociedade, moldam o recorte do que é aceito para o ser homem e das limitações para o ser mulher.

O sexo, as vestimentas, a linguagem, os trejeitos, crenças, interesses, profissões, aspirações, sexualidades, todos são associados a duas categorias de gênero: o homem e a mulher. Tais papéis são inclusive impostos enquanto falsas realidades biológicas absolutas, falhando em observar o que Judith Butler argumenta sobre o sexo-como-instrumento-de-significação, que inexiste em uma universalidade biológica, visto que até a compreensão do que é natural depende do contexto cultural.

Nesse sentido, os papéis de gênero podem ser classificados como normas éticas de trato social, conforme determina a teoria geral da norma jurídica, visto que surgem como condutas impostas por força de costumes e hábitos (como por exemplo a jornada dupla de trabalho das mães, a normalização do abandono paterno, as desigualdades de poder, os julgamentos sociais, a violência doméstica e o abuso, a manipulação emocional etc), uma chamada “moral social”, que se estrutura favorecendo um grupo sobre outro; no caso de nossas sociedades, do homem sobre a mulher.

Mas tais normas não devem prevalecer sobre o direito constitucional da equidade de gênero, especialmente no contexto de decisões judiciais. Chimamanda Ngozi Adichie escreve sobre estereótipos, histórias e políticas como resultados da implementação do poder, fundamentados pelo princípio de uma palavra em igbo: nkali, que essencialmente significa “ser maior do que outro”. Para a autora, as histórias, como são contadas, quem as conta, quando são contadas e quais são contadas, dependem de uma relação de poder.

É nessa premissa de “uma história única” que o judiciário favorece narrativas discriminatórias e profere decisões desproporcionais. A não observação e discussão dessas discriminações, impostas por meio de papéis de gênero e imposições sociais, facilita também violências estruturais diretas ou indiretas, que muitas vezes são institucionalizadas pelas decisões judiciais, minando a igualdade de gênero constitucionalmente prevista.

Um exemplo desses tantos impactos está no fato de que em relações e estruturas familiares “tradicionais”, homens e mulheres têm carregado quantidades desiguais de responsabilidades. A esposa, que é mãe, cozinheira, cuidadora dos idosos, faxineira e responsável pelo trabalho emocional-afetivo, é também profissional no mercado de trabalho, que recebe salários desproporcionais aos de seus colegas homens, mesmo que desempenhando as mesmas funções.

Com o Protocolo, as questões de gênero, embora ainda não suficientemente abordadas na legislação brasileira, ganharam mais espaço no Poder Judiciário, não sendo mais aceitos argumentos machistas que desvalorizam o trabalho doméstico ou buscam culpar a mulher pelo fim da relação. Pelo contrário, atualmente, podemos destacar um caso em que, por afirmar, em ação investigatória de paternidade, que uma mãe seria prostituta, o advogado foi condenado ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), conforme REsp n. 1.761.369/SP, que teve como relatora para acórdão a Ministra Nancy Andrighi.

Condutas como essa não partem apenas dos advogados, mas também de Promotores, Juízes e até Desembargadores, como já foi noticiado pelos portais Consultor Jurídico e Migalhas. O Protocolo afirma que perspectiva de gênero é indispensável à obtenção de justiça, notadamente pela assimetria de poder nas relações domésticas, que historicamente naturalizam o trabalho doméstico não remunerado da mulher, ao passo que naturalizam o homem como o único com condições de buscar o crescimento profissional.

Nas ações de guarda e convivência, muitos advogados insistem em uma argumentação em descompasso com o Protocolo. São comuns alegações de que, por não possuir renda, a mãe deve ceder a guarda ao pai, que, na prática, pretende contratar uma babá 24h por dia para cuidar dos filhos. Outro argumento de teor machista, muitas vezes utilizado por homens violentadores, é o da ocorrência alienação parental por parte da mãe, sempre trazida à tona quando há um contexto de violência doméstica e familiar.

Os homens buscam, por meio da Lei de Alienação Parental (Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010), silenciar as mulheres que buscarem a proteção da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006). A um só tempo, confiantes de que seu discurso pode ser aceito pelo Judiciário, que, como vimos, ainda encampa e propaga argumentos machistas, os homens tentam utilizar duas importantes leis para a proteção de crianças e mulheres em seu favor.

Conclui-se, nesse sentido, que o Protocolo funciona como uma bússola interpretativa processual para a proteção das mulheres, permitindo que as questões de gênero, através dele, sejam consideradas nas decisões judiciais. Mas, ainda assim, é essencial que as instituições disciplinares, como chama Foucault, permitam novos saberes sobre as discussões de gênero e discriminação, que resultam em novos mecanismos de poder, os quais proporcionem a construção de novas subjetividades, que não mais permitam as violências perpetuadas pelo patriarcalismo.

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